quinta-feira, 3 de abril de 2008

quase doce metade.

Detestava ouvir os outros conversando, em qualquer lugar que estivesse. Em salas de espera, em restaurantes, cinemas, ônibus, metrô, shoppings... sentia que no fundo não gostava muito do convívio com pessoas estranhas, com opiniões diversas das suas e quase sempre partia do princípio que as pessoas eram chatas. Sabia, que no fundo a chata era ela. Não entendia muito bem de onde vinha esse cansaço com o universo em geral.
Mas não era sobre isso que pensava e nem se preocupava quando desarmada de seu fiel protetor de ouvidos, descobriu que sentado à sua frente estava ali a sua cara metade. Não que acreditasse em "cara-metade" ou "doce-metade" (nome que lhe agradava mais), pois ali em sua frente estava aquele que sabia mais do ninguém de um assunto que muito lhe interessava e ele não a completaria em nada, só lhe acrescentaria. Mas como no momento não havia nenhuma outra expressão que definisse melhor a felicidade de encontrá-lo, mesmo que ele nem a tivesse notado, optou pela "doce-metade".
Ele, um japonês magro que não tinha aquele cabelo liso que a maioria tem mas sim um liso de fio grosso e voz de japonês mesmo e cor de japonês mesmo e que certamente fazia Engenharia Mecatrônica na Poli, discursava sobre o cobrador, um senhor bigodudo de um cansaço agitado e com 50 e poucos anos, sobre linhas de ônibus. A princípio discursavam sobre as mais longas linhas de ônibus:


"- Ainda existe aquela linha que sai de Pirituba e passa por toda a Lapa, Alto de Pinheiros e vai até a Cidade Universitária?

- Olha moço, ela até existe. Mas mudou de nome e de caminho, no fim mudou tudo. Igual a mulher que emagrece e muda a cor de cabelo, vira outra.

- Mas aquilo não é linha longa ? É só uma linha que dá muitas voltas. Irritante até. Linha comprida é aquela CEASA - TERM. BANDEIRA, aquilo que é comprido. Aliás, do Terminal Bandeira só sai linha longa.
- É, lá tem aquela TERM GUARAPIRANGA - TERM. BANDEIRA. Putz, aquilo dá volta viu?!
- Ah, conheço 6505-10.
- E a linha LAPA-SOCORRO. Você conhece?
- Claro, 856-R10. - falava com voz firme, o japonês.
- Pois, você acredita que um cobrador amigo meu faz essa linha e é assim. Ele faz só uma viagem e meia e já dá 8h de serviço. Sai da Lapa, vai até o Socorro volta pra Lapa e pronto acabou o dia. "
Naquele momento por pouco não mostrou seu conhecimento teórico e prático sobre linhas de ônibus, modelos de ônibus e regras de conduta nos ônibus. Quase discursou sobre a intrigante linha LAPA-BARRA FUNDA 828P. Contudo seguindo a regra da vida, permaneceu no quase. Quase conversa, quase risada, quase amor, quase chegada.
E por um momento, enquanto perdia-se no quase escutava sem escutar o resto da conversa que agora enumeravam e analisavam as linhas curtas, as grande garagens de ônibus e os números de carros que nunca são suficientes para tanta gente que vive aqui.
Enquanto eles falavam, arrependia-se por não estar com caneta e papel para anotar todos os nomes de linhas. Pensava também que infelizmente aquela não era em uma linha que usava com frequência e que o trajeto que usaria era curto. Desejou com toda força mais que em um sábado a noite estivesse trânsito por toda a cidade. E como em todo amor que se preze, nunca imaginou que aquele japonês, que ainda tinha espinhas e que ultrapassava o limite entre sabedoria e irritar os outros com muitas informações fosse a tal da doce metade que nada completa.

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