sábado, 8 de dezembro de 2007

Creio

Há bons anos ela era a personificação da música, por uma pedra falsa um sonho de valsa ou um corte de cetim, hoje em dia não passava de uma senhora sempre vestida toda de preto, luvas de estampa de tigre e um cabelo longo e crespo preso em uma interminável trança embutida. O rosto cheio de pó de arroz, que tinha rugas profundas e dentro dessa profundezas camadas e camadas de pó de arroz que ia acumulando-se ao longo dos dias, ao longo dos anos por ela que se sabia como falsa asseada.
Mas naquele mesmo rosto enrugado e mascarado por uma cortina espessa de pó de arroz, havia ainda o que sobrou de lábios carnudos cor escarlate e olhos pretos e eternos.
Seu rosto era um museu de marcas e mostrava escancaradamente para todos que por algum instante a olhavam, o que ela poderia ter sido e não foi. E para comemorar diariamente o que poderia ter sido, realizava com afinco e esmero um ritual que consistia em: acordar na hora do almoço, esticar com método os lençóis amarelados de linho egípcio, e trancar-se no banheiro todo azul com grandes manchas de mofo no teto e algumas rodelas brancas, mistura de pasta de dente e maquiagem, na pia grande. Passava horas maquiando-se frente a um espelho embaçado preso ao armário por quatro parafusos de cabeça de cristal, quebrados todos eles em alguma parte. E saía dali com o rosto borrado, mas isso era culpa do espelho embaçado de sujeira e não das suas mãos tremulas.
Às cinco da tarde, religiosamente, sentava-se sempre na mesma mesa de bar que lhe dava um ótimo ângulo de visão da avenida apressada em frente e do cemitério ao lado. Saboreava com gosto a primeira das três latas de cerveja que tomava todos os dias (e noites). E ao primeiro gole e ao primeiro sinal de transeunte que lhe chamasse atenção, por um motivo qualquer como a cor laranja da camisa ou o bordado rechilieu da saia, lembrava-se dele.
Ele que nunca encaixou-se bem na letra de cortes de cetim, ele que nunca havia desejado uma mulher do Dao-, ele que só usava camisa com bolso e tinha os cabelos mais assimetricamente alinhados que já vira, ele que lhe dava o direito de perdoar-se todos os dias de manhã, que fazia com que ela gostasse do próprio cheiro e que apesar de toda a dor que lhe mostrava a fazia enxergar e acreditar em um mundo só visto através dos dançarinos estampados na embalagem de bombom.
Ele que durante o dia carregava para todos os lados uma padiola, cheia de terra, flores e velas e que todas as noites rezava com sinceridade por todos que enterrava, ele para quem ela nunca teve coragem de dizer que gente como ela sempre saía apressada de festas e de amores para nunca ter que verbalizar qualquer sentimento.
Ele que todos os dias as cinco da tarde, enquanto ela ainda de costas para avenida e para o cemitério, arrumava com esmero a cadeira para sentar-se, saía vagaroso pelo portão do mesmo cemitério antes de terminar o terceiro 'creio'.

Nenhum comentário: