quarta-feira, 30 de abril de 2008

Engole Vento

"Você calado já está errado." era com essa frase que ele balizava seus dias e para errar menos na vida permanecia calado na maior parte dela. Existem pessoas que chamam atenção pelo silêncio, mas no caso dele seu silêncio era irrelevante assim como a figura toda era. Não era nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem muito moreno e nem muito claro. Se no mundo existisse coisas como "meias mentiras", "garotas meio grávidas" e "pessoa meio morta" ele faria parte desse grupo da impassível coluna do meio.

O trabalho não exigia muita comunicação e quando essa se fazia necessária era por meio de e-mails ou cartas que se dava. A vida social também não, os amigos eram poucos. Tinha o pessoal da gibiteca com quem trocava, emprestava e esquecia uma enorme soma de histórias que lhe diziam mais a respeito do que sua própria vida. Mas eles também não eram muito de falar fato que só colaborava para a relação, só de pensar que alguém pudesse lhe pedir alguma opinião sobre alguma história isso já o incomodava e inevitavelmente a frase martelava em sua cabeça 'você calado, já está errado'.

Além do pessoal do gibi, tinha também o pessoal da corrida noturna. Mas esses, ao contrário dos primeiros, eram falantes e animados. Foi por isso que acabou se afastando da enorme turma e decidiu correr sozinho, ou quase. Pois assim como ele, na mesma época em que ainda tinha alguma ligação com o pessoal da corrida reconheceu na turma, por meio do olhar talvez - ninguém conseguiu descobrir como, uma amiga tão calada como ele. O suficiente para que não soubessem nomes, profissão ou endereço um do outro. Encontravam-se todos os dias na mesma esquina às 22h00, corriam por duas horas por trajetos diferentes e existia entre os dois a sintonia suficiente para que soubessem quem ditaria o caminho naquela noite. Não precisavam marcar encontros assim como não precisavam de nomes, armários arrumados por cores, gavetas organizadas por objetos e separadores de talheres na cozinha.

Enquanto corria sob uma iluminação amarela, por ruas com cheiro de mijo, escuros sombrio e vultos indecifráveis ia repassando em sua cabeça todas as frases aprendidas e apreendidas: "Refrigerante corta o efeito do antibiótico.", "Quem toma gelado depois do almoço, morre.", "O morcego é um camundongo grande.", "Em rio que tem piranha, jacaré nada de costas. ". Para cada um deles imaginava uma situação, um dono, um lugar para acontecer. Para cada uma das pessoas que falavam alguma frase de efeito encontrava soluções rápidas e práticas para a vida delas. Havia sempre um fim para todos os personagens das histórias que lia, para si mesmo criou o seu fim de todos os dias correr por duas horas, acenar para a parceira de corrida e tomar café com leite em pé, em qualquer bar que impreterivelmente deveria ser de esquina.

(continua...)

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