quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

o que não muda

Todas as vezes que as encontrava sentia um misto de alívio, piedade e raiva. Alívio por não ser daquele tamanho todo, piedade por todo aquele tamanho, por toda a dificuldade que existe em passar na roleta, em amarrar cadarços, em atravessar a rua correndo, em qualquer outra coisa que só quem é daquele tamanho sabe o quão difícil é. E sentia raiva, mas muita raiva delas por só subirem nos ônibus que tivessem pelo menos dois lugares vagos, por empurrarem todos os outros passageiros que também desejam tomar a mesma condução, por serem amigas dos cobradores só para eles segurarem os lugares para elas e principalmente se por acaso viajassem de pé reclamavam mais do que noiva em véspera de casamento.

Além do mais elas não respeitavam as cinco incríveis regras - imaginárias e intercambiantes - que ela criou para entender a lógica do "quem senta primeiro no ônibus lotado". Leis muito simples de entender mas que a maioria dos usuários não compreendiam e as duas então chafurdavam na lama para tais regras. Era assim: I. Banco reservado é melhor nem sentar para não ter que levantar no meio da viagem para algum idoso, grávida, deficiente físico ou mulher com criança de colo. ; II. Se você está parado em frente a um banco, quando ele vagar o próximo a sentar é você. ; III. Se você está parado entre dois bancos ou você se deu mal ou você já deve saber que as pessoas paradas em frente a um dos dois vão descer logo, senão terá que seguir a regra II.; IV. Se você está parado em frente a um banco de dois lugares e de um lugar só, quando o banco único liberar ele é teu, quando a janela do banco duplo liberar ela também e tua, mas se o corredor liberar antes o lugar é de quem está parado em frente.; V. Se você está parado perto dos bancos do fundo, bingo! Qualquer um dos cinco lugares que vagar é teu, contudo você chegará ao destino com as nádegas um pouco quentes ( nem tudo é perfeito).

De qualquer modo, tentava sempre se policiar em seus pensamentos maldosos e incorretos e não porque sentia muita pena (se uma delas ainda tivesse os ombros caídos ou olhos mais melancólicos até poderia ser), mas por sempre pensar que não é certo e que hora mais hora menos, seria castigada por deus por pensar aquilo tudo e então um dia todos aqueles pensamentos tragicômicos poderiam voltar-se contra ela. Era quase como passar em baixo de uma escada, todos acreditam que é uma superstição boba, mas a vida já é tão complicada que o melhor a fazer é não dar "sopa para o azar". Por isso, concentrava-se na música, na unha por fazer, no lixo que boiava e na fome que sentia. Mas a cada bolsada na cabeça, sentia ódio das duas e torcia para que o ônibus freasse com força jogando-as no chão e rasgando a meia calça Kendall.

Era certo que não gostava muito de imaginar situações piores, era difícil admitir mas sentia um certo afeto pelas duas. Tanto sentia, que certa vez até cedeu lugar para uma delas mas o gesto sincero foi entendido como chacota pois o banco de lugar único era muito pequeno para qualquer uma das duas. Desde então aquilo que era uma "não-relação" entre anônimos amistosos, virou uma "não-relação" entre anônimos que odeiam outro anônimo. Sendo assim, procurava sempre manter distância, mas era sempre uma bolsada, uma cotovelada e um pedido de "dá licença" aos berros no ouvido. Aos poucos ia nutrindo seu temor e desprezo pelas cantoras de ópera. Sorria por dentro ao vê-las levantando desajeitadas e torcia sempre para que a roupa de uma delas rasgasse ou que um cadarço desamarrasse. Mas levava sempre a pior quando o assunto era sentar primeiro, não tinha o carisma delas e nem a simpatia para com a maioria dos cobradores. Exceto com uma cobradora com quem sempre conversava banalidades do dia-a-dia e por incrível que pareça adorava fazê-lo.

E um dia de chuva, trânsito, dor de cabeça e braveza iminente, avistou as duas quase pegando o setedoissetedois mas desistiram ao ver que não havia lugar. Elas ficavam ali entre os dois pontos, sentido bairro e sentido centro aquele que passasse primeiro mais vazio ela pegavam. Não se importavam com o tempo de viagem e sim com o lugar para sentar, algo que para alguém intolerante com fome e rude é muito irritante. Quando finalmente avistou 'setedoisoitoum' aproximando-se, ela já sem forças e longe da parada encolheu os ombros e conformou-se com a hora e meia em pé e amassada. Antes mesmo de pensar em correr já tinha desistido de subir na frente das duas, com uma sacola na mão e todo o ódio do mundo que poderia carregar em uma tarde como aquela na outra, olhou tão fundo o chão que quase não viu quando a matrona de óculos cedeu a passagem para ela.

Um comentário:

Rita Loiola disse...

ehehe, parece minhas viagens no morro grande... gostei.