domingo, 16 de dezembro de 2007

Se havia alguma coisa no mundo que a irritasse, era sandália em dia de chuva. Odiava sentir seu pé molhado grudando na palminha da sandália que lhe era tão querida. Sentia nojo do próprio pé, da areia que entrava e pensava sempre que no dia seguinte morreria de leptospirose.
Assim, com cuidado andava na ponta dos pés na calçada irregular, cheia de poças, bitucas de cigarros molhadas, papel de bala etc. Tal visão só contribuía para o nojo que sentia. E como se não bastasse a visão do inferno que tinha aos pés, a dor na batata da perna por andar na ponta do pé já por cinco quarteirões e a barra da calça, que molhada, encostava frequentemente na pele aumentando ainda mais o nojo que sentia do mundo e de si mesma, alguém com os sapatos fechados pisou em uma poça espalhando água suja para todos os lados e destruiu em menos de 5 segundos todo o sacrifício de cinco quarteirões. E ali o que eram pés úmidos e com um nível de higiene razoável, agora não pasavam de viveiros de todo o tipo de sujeira do mundo.
É, definitivamente aquele não poderia ser um dia de sorte. Dobrou a esquina, sem acreditar muito na vida e ao longe viu uma figura disforme, que andava com passos certos. Sumia e reaparecia no meio da multidão e quando não havia mais ninguém que lhe impedisse a visão, descobriu que a tal figura disforme na verdade era um casal abraçado. A visão a princípio lhe causou um sentimento de posse lá no fundo, pequeno e imperceptível se ela fosse adepta da linha "trator", mas confessou a si mesma que o que sentiu olhando ao longe o casal, foi um sentimento de inferioridade. Sentimento que sentia há tempos, mesmo antes. Mesmo quando era um casal. Não dava para voltar atrás e explicar tintin por tintin que na verdade gostava disso ou daquilo e achava isso ou aquilo do mundo, não fazia muito sentido. Não dava também para carregar um fantasma pela vida toda, mas também não dava para resolver aquilo do dia para noite. Mas já contavam muitos dias e noites.
Quando entrou no vagão, ainda pensava em soluções doces e tranquilas para o que sentia. E não sei se pelo gosto doce, pelo vagão verde, se pela música cantada de forma tão fiel ao sentimento que dizia e mesmo olhando para o senhor de terno que metodicamente tirava meleca do nariz e não se incomodava em ser flagrado em momento tão íntimo, voltou a acreditar na sorte.
Mas para ela, naquele instante, a sorte e coincidência eram quase a mesma coisa. Olhar o homem tirar meleca do nariz a fez lembrar do outro homem que encontrava sempre em momentos íntimos dele, ele morava perto de um muro caiado e sempre as 08h45 da manhã escovava os dentes com o dedo indicador usava como pia uma garrafa de coca-cola 2L. Garrafas lhe eram muito úteis, as vezes com líquido amarelo, as vezes com líquido branco e até com refrigerante. E aquilo, de ver dois homens em momentos íntimos no mesmo dia era uma grande coincidência e uma sorte meio torta, mas ainda assim sorte.
Quando acreditou com mais força e vontade em sua "teoria do dia" sobre "as irmãs: Sorte e Coincidência", pensou no verde, mas não no verde do vagão.
E ao pensar de novo ficou em dúvida, talvez a cor não fosse verde e sim azul. E pensou tanto e tanto que sua teoria tornou-se real. Poderia não durar muito tempo e por antecedentes não duraria mesmo, mas era a vida que pulsava de novo.

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