sexta-feira, 28 de outubro de 2005

Respire fundo

O ônibus não passava nunca. Era um domingo a noite em uma rua deserta que tinha um ar de cansada do dia cheio que teve. Papéis no chão, paredes acinzentadas pela fuligem, fios de eletricidade que formavam um desenho desorganizado.
Olhou para seu reflexo na poça d'água e estava disforme, assim como a lembrança que tinha das pessoas, dos lugares. Percebeu que nunca guardava na memória o todo, mas sim algumas partes do objeto lembrado e que de alguns nem lembrava mais. Sentiu uma culpa por se deixar esquecer, mas sabia que também já fora esquecida.
Pensou se ele ainda lembrava da sua risada, do jeito de olhar, do toque, do perfil ou de alguma parte dela que ela nem sabia que tinha. Buscou-o dentro si, tentou juntar seus fragmentos - as mãos, os olhos, a forma de arrumar o cabelo - com toda a ternura que conseguia lembrar dele mas parecia que a dor constante fazia com que ela parasse no meio. Não conseguia sentir ternura por inteiro.O ônibus finalmente chegou, ao entrar não lembrava mais que tentava respirar fundo, até o fim.

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