segunda-feira, 16 de junho de 2008

Faz por mim?

Não sabia ao certo se desesperava-se pelo o imprevisto dos acontecimentos ou se pela sensação de vazio que sentiria ao chegar em casa. Faria como sempre fez: abriria a porta, chaves no chaveiro, casaco no cabideiro, bolsa no sofá, com a geladeira aberta pensaria: "primeiro lavar panelas ou fazer o jantar?', lavaria as panelas e quando já estivesse com muita fome cozinharia para os dois.
Depois dos filhos crescidos e casados a rotina ainda era mesma de quando as crianças eram realmente crianças. Ela professora, lecionava o dia todo. Ele, chefe da manutenção do metrô, consertava trens a noite toda. Encontravam-se aos fins de semana, em bilhetes espalhados pela casa, em pequenos tesouros cotidianos escondidos cada vez em lugares mais secretos e que só pertenciam aos dois e sempre aos finais de seus túneis diários.
Enquanto pensava na panela de feijão que ele tinha guardado sem tampa na geladeira e que certamente estragaria. Um por um dos amigos, irmãos, filhos, sobrinhos, cachorro e papagaio a cumprimentavam e lhe diziam com sinceridade de mãe que estariam ali para o que ela quisesse, que poderia contar com eles para qualquer coisa.
Ela, atônita, pensava só na panela de feijão destampada na geladeira, estragando e empestiando a geladeira inteira de fedor de feijão estragado. Na pessoa seguinte que veio lhe cumprimentar ela disse: "Você pode fazer algo por mim? Essas são minhas chaves, ao entrar em casa, pendure-as no chaveiro a sua direita, coloque seu casaco no cabideiro ao lado do chaveiro, abra a geladeira, olhe a pia cheia louça, tire a panela de feijão sem tampa da geladeira, lave a louça e faça o jantar."
Dizia isso com calma e enquanto falava seus olhos brilhavam, prosseguiu: "E eu posso te pedir mais um favor? Se eu te passar uma lista de coisas na ordem exata que devem ser feitas, você faz para mim por uma semana? E depois de feito me diga por favor como é estar em casa sem ter que cozinhar para dois, sem ter que pensar na panela de feijão destampada na geladeira. Me diga também como é encerar o piso da sala e não encontrar em baixo de um taco solto um bilhete escrito 'eu te amo'.
Faz isso por mim?"

2 comentários:

Andy disse...

sempre ótimo. sempre sucesso.
e saudades de ti.

Anônimo disse...

Lindo. Como sempre. Sou sua fã, menina talentosa|!
Beijos, Dê